domingo, 13 de fevereiro de 2011

Um domingo

O passado.
Este que a qualquer instante insiste em regressar com o mesmo furor do último rebote sangrento de um tornado qualquer, daqueles, com um ridículo nome feminino, nomeado por algum meteorologista entediado frente às turbulências climáticas descontroladas de mais um verão-acidente.
Chega por meio de janelas desconhecidas, visualizadas ao acaso pelo olho que tudo procura e nada encontra, a não ser a certeza de que o caminho escolhido ainda não o levou as nuvens encantadas, apenas a variações harmônicas do que um dia foi um sonho, e hoje, abismos.
Traz lembranças, remexe feridas, reforça lições, alucinações psicossomáticas de uma vivência baseada num conceito moralista a cerca das relações humanas. Drama? Comédia? Delírio?
Ele, o passado.
O tal que não proporciona abertura para a apreciação de determinadas músicas antigas, muito menos para o prazer de filmes injustamente tidos como insidiosos, pois quando tudo torna-se nublado, a iminência de uma tempestade faz com que permaneçamos ali embaixo da mesa, quietinhos, por prevenção. Ninguém quer ter seu tronco machucado novamente por uma viga mal sustentada que cai com a força do vento mais inesperadamente traiçoeiro. Calosidades.
Com a prateada ponta de uma caneta nanquim, ele derruba suas gotas de tinta na já amaciada malha branca. Por sorte, atualmente os produtos de lavanderia alcançaram níveis tão altos no que tange sua eficácia, que horas depois a malha encontra-se branca novamente e a moderna centrífuga - que não permite nem que a mesma fique por muito tempo no varal para secar - finaliza o incidente.
Até ele passa, o passado.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O Atlas


É impressionante como as vezes queremos carregar todo o sofrimento do mundo nas costas. Arquivamos uma decepção ali, colocamos uma questão mal resolvida na gaveta, e assim vamos criando nosso próprio mundo de dor a ser carregado dia após dia pelos nossos pobres ombros.
Estranho iniciar este texto assim, depois de quase quatro meses sem escrever. Mas traduzindo uma das peças alemãs que estou estudando, fui um pouco a fundo em determinadas reflexões e não poderia deixar de falar, ou melhor, de escrever.
A canção em questão chama-se Der Atlas (O Atlas), e é a oitava do ‘ciclo’ de canções Schwanengesang (O canto do cisne) de Franz Schubert. Este ciclo reúne as últimas canções do compositor, canções estas que antecederam sua morte em 1828. As canções deste ciclo não possuem uma ligação tão visível como acontece no Winterreise (Viagem de inverno) ou no Die schöne Müllerin (A bela molinera). Apesar disso, acredito que exista uma forte temática interna ligando-as de certa maneira, mas isso é uma tarefa para meu mestrado ou doutorado elucidar, quem sabe.
Voltando a canção, vale destacar que Schubert musicou o poema originalmente escrito pelo brilhante poeta alemão Heinrich Heine. A poesia faz referência a mitologia grega, onde Atlas teria sido um titã condenado por Zeus a sustentar os céus sobre os ombros para sempre. Eis a tradução:

O Atlas

Eu desafortunado Atlas! Um mundo,
Todo um mundo de sofrimento devo carregar,
Carregar o incarregável, e no peito
Carrego um coração que quer se quebrar.

Você coração orgulhoso, você bem o quisera,
Quisera felicidade, infinita felicidade,
Ou infinita miséria, orgulhoso coração,
E agora você está miserável (infeliz).

O texto em sua relação mitológica e poética com nossas vidas já é por si só pesado. Schubert foi um pouco além e realizou uma de suas obras primas, uma canção dramática, dolorida. Como acontece em muitas poesias musicadas, algumas mudanças na estrutura do poema foram feitas e o compositor termina sua canção repetindo a frase Die ganze Welt der Schmerzen muß ich tragen (Todo um mundo de sofrimento devo carregar) de forma terrivelmente sofrida, amparado na linha escrita para a voz e no denso piano que a acompanha.
Desde a minha última visita ao antigo supermercado eu não consegui mais escrever. Estava envolvido num processo diferente. Numa desintoxicação interior. Hoje percebo a importância de não permitirmos que um imenso globo de sofrimento se forme sobre nossos ombros. Não vale a pena! Desgastamos nossa saúde, nosso intelecto, nossas relações, perdemos momentos importantes de felicidade com os amigos, familiares, enfim, perdemos tempo.
A mitologia conta que Atlas teve uma trégua em seu sofrimento. Este descanso ocorreu quando Hércules ficou segurando os céus por algum tempo, até que Atlas o ajudava a finalizar seu 11º trabalho, que consistia em apanhar algumas maçãs de ouro que nasciam no jardim das Hespérides. Depois Atlas volta a segurar os céus para sempre.
Nós não podemos sustentar nossas dores para sempre, ou melhor, não devemos. Deve existir uma válvula de escape, uma volta por cima, um Hércules que não devolva os céus de volta dia após dia. Alguns dizem ser esta válvula o tempo. Concordo. Só não podemos nos perder nele.

Se quiser ouvir a canção, clique aqui: Der Atlas 

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

No supermercado



Alguns dias atrás eu disse que não tinha certeza se conseguiria caminhar por uma estrada reformulada, sem em um ou outro momento cair em antigas fraquezas, mas que tentaria ao máximo fazê-lo. Hoje, sinto-me aliviado.
Desde novembro voltei a visitar o antigo supermercado novamente. O folheto de ofertas era como sempre colorido, chamativo. Os preços pareciam valer a pena quando comparados com a concorrência. Mesmo sabendo que já tinha adquirido produtos ali com o prazo de validade vencido, e que a textura aparentemente bela fez-se amarga a cada colherada, comprei por dias e dias a idéia de um futuro melhor. Na vitrine muitas luzes, que não chegavam a cegar os clientes, apenas tentavam, mas eu, já vacinado, entrei na loja com meus óculos escuros, e escolhi os produtos racionalmente, sem pressa, dando um passo de cada vez.
A cada dia voltava ao supermercado sem barreiras, de coração limpo, sempre tomado pelo velho intuito de não me arrepender pelo o que não tentei. E deu certo! Quer dizer, não deu. Mas ao menos não me sinto arrependido por ter tentado. Considero que deu certo porque meu coração continua cheio do desejo de ser mais, de viver plenamente, de me dedicar ao que acredito e ao que almejo, sem pestanejar, sem uma lágrima sequer. Se ela ainda virá (a lágrima), não sei. E também não resistirei, faz parte de todo processo similar a este.
Não encontrei o produto. “Ele está esgotado” - disse o repositor. E não significa que não o encontrarei um dia. Sem desespero. Sem paranóias. Vivendo com leveza - citando novamente Kundera – porque escolheria o peso?
Saí do supermercado por volta da meia-noite sem bater a porta e sem discutir com a moça do caixa. Pela primeira vez nesta situação não era necessário sequer alterar o tom da voz. Pedalei rumo a minha casa sentindo o ar fresco desta madrugada veraneia. “Não preciso deste produto no momento, estou muito bem com o que tenho em mãos...” - concluo.
O incidente foi apenas um buraco na estrada, daqueles bem pequenos. Não quebram a suspensão, nem tampouco impedem o carro de chegar ao seu destino.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Uma mulher sob influência



Estou com dor de cabeça. Fui assistir a sessão do projeto Um Outro Olhar com a mente limpa, sem saber do que se tratava o filme, enfim, sem esperar nada do mesmo. E saí do Auditório Helio Moreira chocado, estressado. Não estou reclamando, normalmente escolho ver filmes que me façam pensar, que não sejam apenas um vago entretenimento, opção minha.
Fato é que o filme surpreendeu-me. Diversos momentos de intensidade fortíssima contrabalanceados com sutilezas que buscavam leveza, mas todo o drama por trás daquele caos apresentado pelo diretor, não nos permite relaxar. John Cassavetes (aliás, palmas... merece muitas) demonstra um estilo próprio, rico, orgânico, próximo do público, envolve, nos fisga e não conseguimos escapar mais.
Durante o longa torna-se impossível para o público não realizar comparações, não se lembrar de situações vividas por si ou por pessoas próximas.
O filme trata do processo da degradação familiar ou seria de uma família já em ruínas? Um casamento fracassado com forte tendência a tragédia? Ou seria apenas uma crise conjugal que pode ser curada com amor? Oi? Não, isso não! Definitivamente! Não acredito que um casal se encontrando naquela situação, enfim, que possa simplesmente dali brotar uma relação sadia. Não é pessimismo, juro!
Só não concordo com algumas resenhas lidas na internet. “O filme fala do ruir de uma família graças aos problemas psicológicos da Mabel...” Como? Coitadinho do marido não é mesmo? Ahhhh... por favor! Ele é totalmente transtornado! Fez três filhos com a esposa e não dá atenção a mesma, é filho de outra pessoa tão transtornada quanto. Sem se falar num dos momentos que mais me marcaram no filme: aquele pedido desesperado de ajuda da Mabel para seu pai, mas ele não entende. Enfim, não é só isso meus caros críticos de cinema, não é mesmo, que visão simplista.
Resumindo, o filme é tenso.
E os atores esplendidos, todos dentro de seus personagens, formando um círculo, tecendo a trama fio a fio, mas com naturalidade, nada escapa, nada salta a nossos olhos como algo fora da situação, da história, está tudo ali, nu e cru. A maravilhosa Gena Rowlands, atriz principal do filme está soberba! Uma interpretação, eu diria, carnal, inteira, verdadeira. Ela tem todo um trabalho corporal neste filme, dificilmente visto no cinema. Fantástica!
No mais, gostaria de dizer que eu não ia me atrever a escrever sobre este filme tão cedo. Mas vindo para casa de ônibus, fui incentivado por uma situação que presenciei. Uma mulher com seus trinta anos, estava com seus três filhos (mera coincidência) que deveriam ter entre quatro e oito anos. Ela não dava conta. Enquanto um queria pular a roleta de volta, o outro queria subir no banco e colocar a cabeça para fora, e a outra, só sabia correr no corredor do ônibus em movimento, de uma forma frenética. A mãe, sem domínio da situação, só sabia gritar “sai daí fulano, senão eu vou contar tudo pro seu pai!”. Onde está esse pai sábado a noite faltando cinco minutos para a meia-noite?
Enfim, minha imaginação foi longe. Adoro filmes que me fazem refletir sobre a realidade do humano, cresço com eles.
Só me resta dizer que vale muito a pena assistir.

Uma mulher sob influência (A Woman Under the Influence) - EUA/1974
Direção e roteiro: John Cassavetes
Elenco: Gena Rowlands, Peter Falk, Fred Draper, Lady Rowlands, Katherine Cassavetes, Matthew Laborteaux, Matthew Cassel e Christina Grisanti.

Projeto Um Outro Olhar
Data: todos os sábados
Horário: às 20 horas
Local: Auditório Hélio Moreira - Prefeitura Municipal de Maringá
Entrada Franca.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A insustentável leveza do ser



É possível uma relação sobreviver a uma considerável dose intravenosa de traição?
Após descobrir ter sido enganado de maneira grandiosa, como por exemplo, descobrir que seu parceiro passou os últimos meses se relacionando com duas pessoas ao mesmo tempo e detalhe, esqueceu de te contar a respeito da façanha, é possível dizer “tudo bem meu amor, eu te perdôo”, e seguir em frente ao lado desta pessoa de forma saudável?
Por muito tempo achava que sim, hoje já tenho grandes dúvidas.
Acreditava que o amor pela pessoa era capaz de passar por cima de tamanho choque e que começar de novo seria uma tarefa possível de ser realizada. Errado. A cada dia tenho mais certeza de que as pessoas que conseguiram realizar tal feito sofreram caladas por anos e anos, se apagando, se dilacerando, calando-se para evitar grandes e infernais discussões, carregando um fardo imensamente pesado nos anos seguintes ao da descoberta.
Não é fácil vencer uma sensação que é complexa até mesmo de ser resumida em palavras. Seu chão desaparece. A imagem que você tinha do ser amado evapora. Você não entende. Por instantes parece que você está numa floresta assustadora e escura, andando de costas, sem saber onde irá pisar no próximo passo. Você sente medo.
O escritor tcheco Milan Kundera em seu livro A insustentável leveza do ser, busca pré-definir o ato de trair como algo que sai da ordem e parte para o desconhecido. Cita ainda que a primeira traição é irreparável. Torna-se difícil ler tal afirmação e não refletir sobre o assunto, principalmente se você já esteve em um dos dois lados, o de traído ou de traidor. Segundo o autor, a primeira traição provoca numa reação em cadeia, outras traições, cada uma das quais nos distancia mais e mais do motivo da traição inicial. Ou seja, torna-se um vício.
O autor, entretanto, parece querer dizer em diversos momentos do romance que a traição não seria algo tão repudiável. Essa definição do ato de trair como sendo algo abominável seria embutida nas nossas mentes desde cedo através de nossos pais e professores, que normalmente estariam encarregados de nos fazer acreditar que a fidelidade é a primeira de todas as virtudes, que sem ela nossa vida não teria unidade e estaríamos fadados a viver uma vida estilhaçada por impressões fugidias. Seria verdade?
Provavelmente não, pois existem culturas onde a monogamia não é uma regra de moral e essas nações estão lá até hoje, com problemas como todo o resto do universo, mais a poligamia sem dúvidas não foi a causadora destes problemas.
Os personagens de seu romance oferecem diversas reflexões sobre o assunto. Tomas é um homem que opta por levar a vida de quarto em quarto conhecendo e provando diversas mulheres, apelidando-as carinhosamente como sendo suas ‘amigas eróticas’. Já Tereza, sua companheira “fixa”, é uma mulher que ama seu homem e dedica sua vida inteira a ele, suportando as tais amizades eróticas em prol de não perdê-lo, apagando-se, não se importando com a própria profissão, ficando doente por encarar dia após dia tal situação, tudo em prol dessa união. Seria cômico se não fosse trágico, mas no final das contas Tomas já de idade resolve largar sua profissão, suas amizades eróticas, e ficar apenas com Tereza; enquanto ela, neste momento, já não sabia mais se o que sentia por ele esse tempo todo era amor mesmo ou se tinha destruído a vida de Tomas por mero sentimento de posse, levando-o a mudar seu rumo para ficar com ela.
O que seria traição realmente? Teresa era traída? Ela que sabia das escapadas diárias de Tomas para encontrar suas amigas eróticas? Sim, ela sabia. É fato. E mesmo assim, lutou até o fim, recebendo como premio pela vitória Tomas, para sempre ao lado dela e somente dela.
Já Tomas via suas relações casuais como desejo de fazer amor, o que se aplicaria a um número imenso de mulheres. Para ele, o desejo do sono compartilhado – o qual poderíamos traduzir como comprometimento, algo sério – dizia respeito a uma só mulher. Muitos explicam o ato de trair desta forma, estaria de todo incorreto?
No romance ainda aparecem outros dois personagens: Sabina, uma versão feminina de Tomas, com todas as características que a carreira de artista faz distinção a de médico; e Franz, namorado de Sabina, o qual poderíamos descrever como a versão masculina do Eu de Tereza, mas como Sabina não se deixou prender como Tomas por Teresa, Franz acaba se refugiando na utopia, e todas as suas atitudes são direcionadas no sentido de cativar a admiração de Sabina.
Das impressões que ficaram ainda não totalmente amadurecidas por mim, cito primeiro a idéia de que talvez o ideal de vida sadia quando se trata de relação amorosa seja um relacionamento aberto. Parece que o fechado gera posse, desejo pelo diferente, e até mesmo certo tédio que vai matando a relação aos poucos.
Uma segunda hipótese seria a de que se fez algo, conte. Sinceridade é algo fundamental em qualquer relação, não apenas na amorosa. Sabemos que é difícil encontrar pessoas sinceras a tal ponto, mas elas existem.
Agora, o casal tentar se adequar a qualquer opção de mudança tendo como passado o caso citado no início deste texto, está certamente fadado ao fracasso. Não se pode generalizar, mas, enfim (...).
O ideal seria algo novo, que parte do zero com estas premissas, sem ressentimentos, sem mágoas, sem desconfiança.
Traição e peculiaridades a respeito do convívio dentro de uma relação amorosa sem dúvidas, foram assuntos que chamaram minha atenção neste fantástico romance. Mas não poderia deixar de citar que Milan Kundera além de narrar os amores e os desamores de quatro pessoas, genialmente faz com que sua história seja permeada pela invasão russa à Tchecoslováquia e pelo clima de tensão política que pairava na Praga daqueles dias, sem, contudo, tirar a sede com que lemos seu romance até o final. Além disso, Kundera trabalha a problemática do peso e da leveza durante toda a história, sempre amparado nas teorias de grandes filósofos universais.
Leitura necessária e altamente recomendada.
E as reflexões sobre o tema certamente não cessarão por aqui.

A insustentável leveza do ser
de Milan Kundera
Editora Companhia de Bolso
2008

sábado, 9 de janeiro de 2010

Beleza e tristeza


 
Entre as últimas atividades desenvolvidas em uma das disciplinas que cursei em 2009 na graduação, estava a leitura de um livro literário. No primeiro dia desta atividade, a professora chegou com mochilas e sacolas repletas de livros e os espalhou sobre algumas carteiras agrupadas. Nossa primeira tarefa enquanto alunos era a de contemplar aqueles livros, e escolher o que nos acompanharia durante as seis ou sete semanas seguintes.
Alguns escolheram pela quantidade de páginas, já antevendo que seria mais fácil dar conta de um livro curto. Outros optaram por exemplares recheados com figuras. Existia ainda o chamariz das capas, com suas cores e formas, direcionando alguns a escolha. Eu fiz minha escolha pelo título, encantado com a junção destes dois substantivos: beleza e tristeza.
A segunda tarefa era simples: deveríamos nos acalmar, aquietar-se dentro da correria normal de final de ano, e passar duas horas por semana dentro da sala de aula em silêncio, imersos no livro escolhido.
Para alguns alunos essa atividade tornou-se uma sessão semanal de tortura. Para outros, um momento especial de lazer. Eu, no entanto, acrescentaria muitos adjetivos a segunda opção.
Agraciado pela escolha, a cada página lida ficava mais envolvido pela história. Já não me lembrava que aquelas duas horas semanais se tratavam de uma disciplina obrigatória, e passei a aguardar ansiosamente por este momento semanal de leitura na faculdade.
Tudo isso porque para mim o livro Beleza e tristeza do premiado escritor japonês Yasunari Kawabata, é sem dúvida uma obra de arte.
Entre as características marcantes do livro está a forma fantástica que Kawabata tornou presente a tradição japonesa em meio a história. Seja nas citações sobre música e dança, ou nas perfeitas descrições sobre a arte do chá e das festas japonesas, o leitor tem a possibilidade de realmente ‘viajar’ até os locais descritos. Além disso, Kawabata ainda cita constantemente fatos históricos e filosóficos do oriente, sem tornar a leitura chata ou a narrativa pesada.
Vale lembrar que a ligação entre beleza e tristeza embutida no enredo não é atual. Para muitas crenças e filosofias, tudo o que é belo possuí necessariamente sua face destrutiva, negra. O próprio budismo defende tal argumento, alicerçando-se nas conseqüências provocadas pelo simples ato de se desejar algo belo, o que levaria o indivíduo do desejo ao sofrimento, ou seja, da beleza à tristeza.
Em seu romance, Kawabata permeia os limiares da beleza e da tristeza nas relações de seus personagens. Ele monta uma história apaixonante em torno de um caso extraconjugal e de suas penosas conseqüências, que transcorreram décadas das vidas dos personagens envolvidos, envolvendo até mesmo os que chegariam muitos anos após os acontecimentos primários (qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência).
A cada trecho somos levados a imaginar a beleza das coisas e das pessoas perfeitamente descritas pelo autor. No decorrer da história, após essas constatações de beleza, somos logo em seguida levados a ter noção da tristeza destinada aos personagens, antes maravilhados com o belo. São frutos amargamente colhidos, resultados de suas atitudes, de suas obsessões, de seus desejos.
Seria a tristeza um destino obrigatório da beleza? Pergunto-me.
É claro, não preciso esclarecer aqui de qual beleza estamos falando, afinal, um belo pôr do sol nada tem de triste, é belo em toda a sua essência (se na hora ficamos tristes por lembrarmos de algum fato passado, tal fato não é fruto da beleza do acontecimento em questão – o lindo pôr do sol).
Ou seja, não é toda beleza que leva a tristeza.
Mas isso não quer dizer que podemos fugir dela. A tristeza é algo intrínseco ao ser humano. Todas as pessoas estão sujeitas a tristeza por inúmeros motivos, e nem sempre é possível sair da fase triste ileso. A depressão, por exemplo, pode ser uma de suas marcas.
O bom então é se concentrar nas coisas belas, buscando amenizar as tristes.
E não se esquecer das belas gratuidades, que não carregam em si a possibilidade de gerar tristeza.

Beleza e Tristeza
de Yasunari Kawabata
Editora Globo
2008 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Tempo que resta


Sinto-me como se começasse hoje.
Não que eu deseje que o passado desapareça. Não posso e nem quero apagá-lo da mente e dos registros. Apenas do blog. Quero registrar a partir de hoje o desejo e a luta por viver um futuro com mais coragem. Intenção. Foco.
Digo isso porque o passado foi morno. Ok, com algumas pitadas de calor intenso, mas poucas, longe de ser o suficiente. Aprendi muito, sem dúvidas, mas não o suficiente. Já beiro a casa dos trinta, poxa! E existem tantas coisas que já gostaria de ter feito, como aprender outros idiomas, viajar, conhecer lugares, pessoas, culturas, ler mais livros, muitos outros, vários, enfim, muita coisa. Sinto-me atrasado, um desperdiçador de dias lindos.
Também não afirmo aqui que conseguirei sem tripudiar. Sem cair em antigas fraquezas que por tempos e tempos ofuscaram meu brilho, me tiraram do centro, me descarrilaram do trilho. Mas vou insistir, isso eu garanto. E escreverei sempre que necessário, sempre que sentir que estou quebrando o eixo, deixando bem claro que escrevo para mim, pois assim busco me entender nas próprias entrelinhas do que escrevo, e sigo em frente.
Se me perguntarem porque estou aqui a resposta pode não agradar a todos, com certeza não agrada a muitos. Porque então não tento fazer com que um dia nunca seja menor que o outro já que não aguardo nada mais ‘brilhante’ em outra dimensão? Digo menor no sentido de não dar importância a um dia vivido. No sentido de achar que ‘um dia a menos, um dia a mais’ não é nada. Sim, é muito!
Não pense que de agora em diante vou sair todos os dias para uma badalada festa, ou me acabarei em orgias sexuais com o intuito de aproveitar o máximo.
Quero ter sentido.
Pretendo estar focado. E não apenas em um ponto.
Seja na carreira, no que quero com a música, nessa minha paixão nem sempre colocada em primeiro plano, seja na minha vida pessoal, tão balançada, tão emocionalmente frágil, alicerçada sobre colunas feitas de espuma de sofá antigo.
Quero descansar a sombra de uma árvore, sentir o vento tocar o rosto, apreciar o pôr do sol, o seu nascer, o céu, coisas simples, gratuitas, tão descartadas no dia a dia de trabalho-faculdade-relacionamentos conturbados, enfim: rotina. Por que!?
Pra que rotina? Não sou uma máquina de café expresso. Sou algo que esta aqui, seja lá o porquê, e deve viver, ser, existir.
Sim, preciso trabalhar. Não digo também que daqui por diante serei hippie. Mas posso viver o gratuito mesmo assim. O importante é não se deixar viver numa medíocre rotina sem sentido.
O convívio com grandes amigos, momentos de amizade sem valor estimável, conversas e ‘viagens’ impagáveis, que já acontecem desde sempre em diversos momentos, estão incluídos nesse pacote.
A família, o valor que dou a ela, o curtir detalhes que podem parecer insignificantes a primeira vista, mas que são tão importantes para eles e também para mim deverão também ser melhor observados.
Enfim, viver. Viver o “tempo que resta”, parafraseando o filme que hoje me fez despertar para toda esta reflexão.
Não sou Romain, o protagonista vivido pelo ator Melvil Poupaud, que na história, devido a um câncer generalizado, tinha de um mês a no máximo um ano de vida.
Mas posso ter no máximo um dia. Dez. Dois meses. Quem sabe a respeito disto?
Não deixar que o hoje seja tão vazio quanto o ontem.
Deixar de pensar que o hoje pode ser amanhã.
Simplesmente existe muito a se fazer agora.
E lá vou eu.

O tempo que resta (Le temps qui reste) - França/2005
Direção e roteiro: François Ozon
Elenco: Melvil Poupaud, Jeanne Moreau, Valeria Bruni Tedeschi, Daniel Duval, Marie Rivière, Christian Sengewald, Louise-Anne Hippeau, Henri de Lorme, Walter Pagano, Ugo Soussan Trabelsi.
Trailer: assista aqui