quarta-feira, 5 de maio de 2010

O Atlas


É impressionante como as vezes queremos carregar todo o sofrimento do mundo nas costas. Arquivamos uma decepção ali, colocamos uma questão mal resolvida na gaveta, e assim vamos criando nosso próprio mundo de dor a ser carregado dia após dia pelos nossos pobres ombros.
Estranho iniciar este texto assim, depois de quase quatro meses sem escrever. Mas traduzindo uma das peças alemãs que estou estudando, fui um pouco a fundo em determinadas reflexões e não poderia deixar de falar, ou melhor, de escrever.
A canção em questão chama-se Der Atlas (O Atlas), e é a oitava do ‘ciclo’ de canções Schwanengesang (O canto do cisne) de Franz Schubert. Este ciclo reúne as últimas canções do compositor, canções estas que antecederam sua morte em 1828. As canções deste ciclo não possuem uma ligação tão visível como acontece no Winterreise (Viagem de inverno) ou no Die schöne Müllerin (A bela molinera). Apesar disso, acredito que exista uma forte temática interna ligando-as de certa maneira, mas isso é uma tarefa para meu mestrado ou doutorado elucidar, quem sabe.
Voltando a canção, vale destacar que Schubert musicou o poema originalmente escrito pelo brilhante poeta alemão Heinrich Heine. A poesia faz referência a mitologia grega, onde Atlas teria sido um titã condenado por Zeus a sustentar os céus sobre os ombros para sempre. Eis a tradução:

O Atlas

Eu desafortunado Atlas! Um mundo,
Todo um mundo de sofrimento devo carregar,
Carregar o incarregável, e no peito
Carrego um coração que quer se quebrar.

Você coração orgulhoso, você bem o quisera,
Quisera felicidade, infinita felicidade,
Ou infinita miséria, orgulhoso coração,
E agora você está miserável (infeliz).

O texto em sua relação mitológica e poética com nossas vidas já é por si só pesado. Schubert foi um pouco além e realizou uma de suas obras primas, uma canção dramática, dolorida. Como acontece em muitas poesias musicadas, algumas mudanças na estrutura do poema foram feitas e o compositor termina sua canção repetindo a frase Die ganze Welt der Schmerzen muß ich tragen (Todo um mundo de sofrimento devo carregar) de forma terrivelmente sofrida, amparado na linha escrita para a voz e no denso piano que a acompanha.
Desde a minha última visita ao antigo supermercado eu não consegui mais escrever. Estava envolvido num processo diferente. Numa desintoxicação interior. Hoje percebo a importância de não permitirmos que um imenso globo de sofrimento se forme sobre nossos ombros. Não vale a pena! Desgastamos nossa saúde, nosso intelecto, nossas relações, perdemos momentos importantes de felicidade com os amigos, familiares, enfim, perdemos tempo.
A mitologia conta que Atlas teve uma trégua em seu sofrimento. Este descanso ocorreu quando Hércules ficou segurando os céus por algum tempo, até que Atlas o ajudava a finalizar seu 11º trabalho, que consistia em apanhar algumas maçãs de ouro que nasciam no jardim das Hespérides. Depois Atlas volta a segurar os céus para sempre.
Nós não podemos sustentar nossas dores para sempre, ou melhor, não devemos. Deve existir uma válvula de escape, uma volta por cima, um Hércules que não devolva os céus de volta dia após dia. Alguns dizem ser esta válvula o tempo. Concordo. Só não podemos nos perder nele.

Se quiser ouvir a canção, clique aqui: Der Atlas 

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